GADOTTI, Moacir.
Projeto político pedagógico da escola: fundamentos para a sua realização. In:
GADOTTI, Moacir; ROMÃO, José E. (orgs.). Autonomia
da escola: princípios e propostas. 5. ed. São Paulo: Cortez: Instituto
Paulo Freire, 2002.
PROJETO
POLÍTICO-PEDAGÓGICO DA ESCOLA
Fundamentos
para a sua realização
Moacir
Gadotti[1]
Até muito recentemente a questão da escola limitava-se a uma escolha
entre ser tradicional e ser moderna. Essa tipologia não desapareceu, mas não
responde a todas as questões atuais da escola. Muito menos à questão do
seu projeto.
A crise
paradigmática também atinge a escola e ela se pergunta sabre si mesma, sobre seu papel como instituição numa sociedade pós-moderna
e pós-industrial, caracterizada pela globalização
da economia, das comunicações, da educação e da cultura, pelo pluralismo
político, pela emergência do poder
local. Nessa sociedade
cresce a reivindicação pela participação
e autonomia contra toda forma de
uniformização e o desejo de afirmação da singularidade de cada região,
de cada língua etc. A multiculturalidade
é a marca mais significativa do nosso tempo.
Como isso se traduz na escola?
Nunca o
discurso da autonomia, cidadania e participação no espaço escolar ganhou tanta força. Estes têm sido
temas marcantes do debate educacional brasileiro de hoje. Essa preocupação
tem-se traduzido sobretudo pela reivindicação de um projeto político-pedagógico próprio de cada escola. Neste texto, gostaríamos de tratar deste assunto, sublinhando a sua
importância, seu significado, bem como as dificuldades, obstáculos e elementos
facilitadores da elaboração do projeto político-pedagógico.
Começaremos
esclarecendo o próprio título: "projeto
político-pedagógico". Entendemos que todo projeto pedagógico é
necessariamente político. Poderíamos denominá-lo, portanto,
apenas "projeto pedagógico". Mas, a fim de dar destaque ao
político dentro do pedagógico, resolvemos desdobrar o nome em "político-pedagógico
".
Freqüentemente
se confunde projeto com plano. Certamente o plano diretor da escola - como conjunto de
objetivos, metas e procedimentos - faz parte do seu projeto, mas não é todo o
seu projeto.
Isso não
significa que objetivos, metas e procedimentos não sejam necessários. Mas eles são insuficientes pois,
em geral, o plano fica no campo do instituído ou melhor, no cumprimento
mais eficaz do instituído, como defende hoje todo o discurso oficial em
torno da "qualidade", e em, particular da "qualidade
total". Um projeto necessita sempre rever o instituído para, a partir dele, instituir outra coisa. Tornar-se instituinte.
Um projeto político-pedagógico não nega o instituído da escola que é a sua história,
que é o conjunto dos seus currículos, dos seus métodos, o conjunto dos seus
atores internos e externos e o seu modo de vida. Um projeto sempre confronta
esse instituído com o instituinte.
Não se constrói um projeto sem uma direção política,
um norte, um rumo. Por isso, todo projeto pedagógico da escola é também político.
O projeto pedagógico da escola é, por isso mesmo, sempre um processo inconcluso, uma etapa em direção a uma finalidade que permanece como horizonte
da escola.
·
De quem é a responsabilidade da conslituição do
projeto da escola?
O projeto da escola não é responsabilidade apenas de sua direção. Ao contrário, numa gestão democrática, a direção
é escolhida a partir do
reconhecimento da competência e da liderança de alguém capaz de executar um projeto coletivo. A escola, nesse
caso, escolhe primeiro um projeto e depois essa pessoa que pode executá-lo.
Assim realizada, a eleição de um diretor ou de uma diretora se dá a partir da
escolha de um projeto político-pedagógico para a escola. Portanto, ao se eleger
um diretor de escola, o que se está elegendo é um projeto para a escola.
Como
vimos, o projeto pedagógico da escola está hoje inserido num cenário marcado
pela diversidade. Cada escola é resultado de um processo de desenvolvimento
de suas próprias contradições. Não existem duas escolas iguais. Diante disso, desaparece
aquela arrogante pretensão de saber de antemão quais serão os resultados do
projeto. A arrogância do dono da verdade dá lugar à criatividade e ao diálogo. A
pluralidade de projetos pedagógicos faz parte da história da educação da nossa
época.
Por
isso, não deve existir um padrão único que oriente a escolha do projeto de nossas
escolas. Não se entende, portanto, uma escola sem autonomia, autonomia para
estabelecer o seu projeto e autonomia para executá-lo e avaliá-lo.
A
autonomia e a gestão democrática da escola fazem parte da própria
natureza do ato pedagógico. A gestão democrática da escola é, portanto, uma
exigência de seu projeto político-pedagógico.
Ela
exige, em primeiro lugar, uma mudança de mentalidade de todos os membros
da comunidade escolar. Mudança que implica deixar de lado o velho preconceito
de que a escola pública é apenas um aparelho burocrático do Estado e não uma conquista
da comunidade. A gestão democrática da escola implica que a comunidade, os
usuários da escola, sejam os seus dirigentes e gestores e não apenas os seus fiscalizadores
ou meros receptores dos serviços educacionais. Na gestão democrática pais, alunos,
professores e funcionários assumem sua parte de responsabilidade pelo projeto
da escola.
Há
pelo menos duas razões que justificam a implantação de um processo de gestão
democrática na escola pública:
1
ª- porque a escola deve formar para a cidadania e, para isso, ela deve
dar o exemplo. A gestão democrática da escola é um passo importante no
aprendizado da democracia. A escola não tem um fim em si mesma. Ela está a
serviço da comunidade. Nisso, a gestão democrática da escola está prestando um
serviço também à comunidade que a mantém.
2
ª- porque a gestão democrática pode melhorar o que é específico da escola,
isto é, o seu ensino. A participação na gestão da escola proporcionará um
melhor conhecimento do funcionamento da escola e de todos os seus atores; propiciará
um contato permanente entre professores e alunos, o que leva ao conhecimento
mútuo e, em conseqüência, aproximará também as necessidades dos alunos dos conteúdos
ensinados pelos professores.
Existem,
certamente, algumas limitações e obstáculos à instauração de um processo
democrático como parte do projeto político-pedagógico da escola. Entre eles, podemos
citar:
a)
a nossa pouca experiência democrática;
b)
a mentalidade que atribui aos técnicos e apenas a eles a capacidade de governar
e que o povo incapaz de exercer o governo;
c)
a própria estrutura de nosso sistema educacional que é vertical;
d)
o autoritarismo que impregnou nosso ethos educacional;
e)
o tipo de liderança que tradicionalmente domina nossa atividade política no campo
educacional.
Enfim,
um projeto político-pedagógico da escola apoia-se:
a)
no desenvolvimento de uma consciência crítica;
b)
no envolvimento das pessoas: a comunidade interna e externa à escola;
c)
na participação e na cooperação das várias esferas de governo;
d)
na autonomia, responsabilidade e criatividade como processo e como produto do
projeto.
O
projeto da escola depende sobretudo da ousadia dos seus agentes,da
ousadia de cada escola em assumir-se como tal, partindo da cara que tem, com o
seu cotidiano e o seu tempo-espaço, isto é, o contexto histórico em que ela se
insere.
Um
projeto político-pedagógico se constrói de forma interdisciplinar. Não basta
trocar de teoria como se ela pudesse salvar a escola.
Pelo
que foi dito até agora, o projeto pedagógico da escola pode ser considerado como
um momento importante de renovação da escola. Projetar significa “lançar-se para
a frente”, antever um futuro diferente do presente. Projeto pressupõe uma ação intencionada
com um sentido definido, explícito, sobre o que se quer inovar. Nesse processo
podem-se distinguir dois momentos:
a)
o momento da concepção do projeto;
b)
o momento da institucionalização ou implementação do projeto.
Todo
projeto supõe rupturas com
o presente e promessas para o futuro. Projetar significa tentar quebrar
um estado confortável para arriscar-se, atravessar um período de instabilidade
e buscar uma nova estabilidade em função da promessa que cada projeto contém de
estado melhor do que o presente. Um projeto educativo pode ser tomado como
promessa frente a determinadas rupturas. As promessas tornam visíveis os campos
de ação possível, comprometendo seus atores e autores.
A
noção de projeto implica sobretudo tempo:
a)
Tempo político que define a oportunidade política de um determinado projeto.
b)
Tempo institucional. Cada escola encontra-se num determinado tempo de sua
história.O projeto que pode ser inovador para uma escola pode não ser para
outra.
c)
Tempo escolar. O calendário da escola, o período no qual o projeto é elaborado
é também decisivo para o seu sucesso;
d)
Tempo para amadurecer as idéias. Só os projetos burocráticos são
impostos e, por isso, revelam-se ineficientes a médio prazo. Há um tempo para sedimentar
idéias. Um projeto precisa ser discutido e isso leva tempo.
Como
elementos facilitadores de êxito de um projeto, podemos destacar:
1º-
Uma comunicação eficiente. Um projeto deve ser factível e seu enunciado facilmente
compreendido.
2º-
Adesão voluntária e consciente ao projeto. Todos precisam estar
envolvidos. A co-responsabilidade é um fator decisivo no êxito de um projeto;
3º-
Bom suporte institucional e financeiro, que significa: vontade política,
pleno conhecimento de todos - principalmente dos dirigentes - e recursos
financeiros claramente definidos.
4º-
Controle, acompanhamento e avaliação do projeto. Um projeto que não pressupõe
constante avaliação não consegue saber se seus objetivos estão sendo atingidos.
5º-
Uma atmosfera, um ambiente favorável. Não é desprezível um certo componente
mágico-simbólico para o êxito de um projeto, uma certa mística (ou ideologia) que
cimenta a todos os que se envolvem no “design” de um projeto;
6º-
Credibilidade. As idéias podem ser boas, mas, se os que as defendem não tem
prestígio, comprovada competência e legitimidade só pode obstaculizar o
projeto.
7º-
Um bom referencial teórico que facilite encontrar os principais conceitos
e a estrutura do projeto.
A
falta desses elementos obstaculiza a elaboração e a implantação de um projeto novo
para a escola. A implantação de um novo projeto político-pedagógico da escola enfrentará
sempre a descrença generalizada dos que pensam que nada adianta projetar uma
boa escola enquanto não houver vontade política dos de cima. Contudo, o pensamento
e a prática dos de cima não se modificará enquanto não existir pressão dos de
baixo. Um projeto político-pedagógico da escola deve constituir-se num
verdadeiro processo de conscientização e de formação cívica; deve
constituir-se num processo de repercussão da importância e da necessidade do
planejamento na educação.
Tudo
isso exige certamente uma educação para a cidadania.
- O que é "educar para a
cidadania"?
A
resposta a essa pergunta depende da resposta à outra pergunta: "o que é cidadania?"
Pode-se
dizer que cidadania é essencialmente consciência de direitos e deveres e exercício
da democracia. Não há cidadania sem democracia.
A
democracia fundamenta-se em três direitos:
-direitos
civis, como segurança e locomoção;
-direitos
sociais, como trabalho, salário justo, saúde, educação, habitação, etc.
-direitos
políticos, como liberdade de expressão, de voto, de participação em partidos
políticos e sindicatos, etc.
O
conceito de cidadania, contudo, é um conceito ambíguo. Em 1789 a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão estabelecia as primeiras normas para assegurar
a liberdade individual e a propriedade. Existem diversas concepções de cidadania:
a liberal, a neoliberal, a progressista ou socialista democrática (o socialismo,
autoritário e burocrático não admite a democracia como valor universal e
despreza a cidadania como valor progressista).
Existe
hoje uma concepção consumista de cidadania (não ser enganado na compra
de um bem de consumo) e uma concepção oposta que é uma concepção plena de
cidadania que consiste na mobilização da sociedade para a conquista dos
direitos a ima mencionados e que devem ser garantidos pelo Estado. A concepção
liberal e neoliberal de cidadania entende que a cidadania é apenas um produto
da solidariedade individual (da "gente de bem") entre as pessoas e
não uma conquista no interior do próprio Estado. A cidadania implica em
instituições e regras justas. O Estado, numa visão socialista democrática precisa
exercer uma ação -para evitar, por exemplo, os abusos econômicos dos
oligopólios -fazendo valer as regras definidas socialmente.
Cidadania
e autonomia são hoje duas categorias estratégicas de construção de uma
sociedade melhor em torno das quais há freqüentemente consenso.Essas categorias
se constituem na base da nossa identidade nacional tão desejada e ainda tão
longínqua em função do arraigado individualismo, tanto das nossas elites quanto
das fortes corporações emergentes, ambas dependentes do Estado paternalista.
O
movimento atual da chamada "escola cidadã" está inserido nesse novo contexto
histórico de busca de identidade nacional. A "escola cidadã" surge como
resposta à burocratização do sistema de ensino e à sua ineficiência.
É
nesse contexto histórico que vem se desenhando o projeto e a realização prática
da escola cidadã em diversas partes do país, como uma alternativa nova e emergente.
Ela vem surgindo em numerosos Municípios e já se mostra nas preocupações dos
dirigentes educacionais em diversos Estados brasileiros.
Movimentos
semelhantes já ocorreram em outros países. Vejam-se as "Citizenship Schools"
que surgiram nos Estados Unidos nos anos 50, dentro das quais se originou o
importante movimento pelos Direitos Civis naquele país, colocando dentro das escolas
americanas a educação para a cidadania e o respeito aos direitos sociais e humanos
Do
movimento histórico-cultural a que nos referimos, estão surgindo alguns eixos
norteadores da escola cidadã: a integração entre educação e cultura, escola
e comunidade (educação multicultural e comunitária), a democratização das
relações de poder dentro da escola, o enfrentamento da questão da repetência e
da avaliação, a visão interdisciplinar
e transdisciplinar e a formação
permanente dos educadores. A interdisciplinaridade refere-se à estreita relação
que as disciplinas mantém entre si e, a transformação, indo, portanto, além da
interação e reciprocidade existentes entre as ciências.
Da
nossa experiência vivida nesses últimos anos, tentando entender esse movimento,
algumas lições podemos tirar que nos levam a acreditar nessa concepção/realização
da educação. Por isso, baseado nessa crença, apresentamos um "decálogo"
no livro Escola cidadã em 1992. Para nós, a escola cidadã surge como uma
realização concreta dos ideais da escola pública popular, cujos
princípios vimos defendendo, ao lado de Paulo Freire, nas últimas duas décadas.
Concretamente, dessa experiência vivida pudemos tirar algumas lições. Para
finalizar gostaríamos de mencionar pelo menos quatro:
1ª-
A escola não é o único local de aquisição do saber elaborado. Aprendemos
também nos fins de semana, como costuma dizer Emília Ferreiro.
2ª-
Não existe um único modelo capaz de tornar exitosa a ação educativa da escola.
Cada escola é fruto de suas próprias contradições. Existem muitos caminhos, inclusive
para a aquisição do saber elaborado. E o caminho que pode ser válido numa determinada
conjuntura, num determinado local ou contexto, pode não sê-lo em outra conjuntura
ou contexto. Por isso, é preciso incentivar a experimentação pedagógica e, sobretudo,
ter uma mentalidade aberta ao novo e não atirar pedras no caminho daqueles que
buscam melhorar a educação.
3ª-
Todos não terão acesso à educação enquanto todos - educadores e não educadores,
Estado e Sociedade Civil - não se interessarem por ela. A educação para todos
supõe todos pela educação .
4ª-
Houve uma época na qual eu pensava que as pequenas mudanças impediam a realização
de uma grande mudança. Por isso, no nosso entender, elas deveriam ser evitadas
e todo o investimento deveria ser feito numa mudança radical e ampla. Hoje, minha
certeza é outra: a grande mudança exige
também esforço contínuo, solidário e paciente das pequenas ações. Estas, no
dia-adia, construídas passo a passo, numa certa direção, também são essenciais
à grande mudança. E o mais importante: devem ser feitas hoje. Como dizia Paulo
Freire, “a melhor maneira que a gente tem de fazer possível amanhã alguma coisa
que não é possível ser feita hoje, é fazer hoje aquilo que hoje pode ser feito.
Mas se eu não fizer hoje o que hoje pode ser feito e tentar fazer hoje o que
hoje não pode ser feito, dificilmente eu faço amanhã o que hoje também não pude
fazer”.
Isso,
de forma alguma, significa renunciar ao sonho da construção de uma sociedade
justa e humana, nem jogar no lixo da História nossa utopia revolucionária. Precisamos
sobretudo da utopia neo-socialista contra a ideologia neoliberal que prega o
fim da utopia e da história. Estamos convencidos, acima de tudo, que a educação,
mais do que passar por uma melhoria da qualidade do ensino que está aí, como
sustenta o Banco Mundial, ela precisa de uma transformação radical, exigência
premente e concreta de uma mudança estrutural provocada pela inevitável globalização
da economia e das comunicações, pela revolução da informática a ela associada e
pelos novos valores que estão refundando instituições e convivência social na
emergente sociedade pós-moderna. Por isso, como afirmamos no início do texto,
não se constrói um projeto político-pedagógico sem uma direção política, um
norte, um rumo.
[1] Moacir Gadotti é
professor titular da Universidade de São Paulo e diretor do Instituto Paulo
Freire. Escreveu. entre outras obras: Escola cidadã (1992). História
das idéias pedagógicas (1993) e Pedagogia da práxis (1995).
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